Quero reconhecer e honrar os sentimentos de medo e insegurança que muitas pessoas passaram a sentir durante e depois do processo eleitoral. Como alguém que busca viver a Liberdade, pra mim, esses são alguns dos piores resultados desse processo como um todo e eu não tenho certeza sobre como lidar com eles daqui pra frente, tanto no nível pessoal quanto no coletivo. Minha esperança e desejo é de que esses sentimentos deixem de existir com a ação do tempo e a inação de comportamentos autoritários.
Em hipótese alguma eu desqualifico esses sentimentos. E tento, como posso, me solidarizar com quem está nessa situação, na qual eu também me encontro algumas vezes.
Começo a escrever um pouco mais sobre a minha experiência singular (como a de cada um) durante o processo das eleições presidenciais (e governamentais) do Brasil de 2018. Meu objetivo aqui não é tanto julgar os resultados em si (que eu, particularmente, considero desastrosos), mas sim fazer uma reflexão meta sobre como eu reagi a esse período intenso de guerra digital.
Dado tudo o que já vivi e aquilo que, hoje, tomo como fundamentos, a eleição já começou desastrosa, com representações muito pouco conectadas com a realidade do século XXI. Conforme o processo foi-se afunilando, eu me vi várias vezes mais e mais acuado. E isso só intensificou com o segundo turno, onde o correto parecia ser o posicionamento claro para alguns dos dois lados, mesmo que nenhum deles fizesse qualquer sentido.
E foi aqui que começou uma grande contradição para mim. A contradição não foi sobre qual proposta de governo ressoava mais comigo (apesar das duas estarem muito desconectadas daquilo que vivo e almejo pessoal-e-coletivamente). A contradição foi entre fazer o que parecia ser o correto - me posicionar em um dos lados da batalha - e o que eu sentia ser o bom para mim - estar em paz com o não posicionamento e canalizar minhas energias para continuar materializando aquilo que já vivo; a co-criação de novos modos de se viver. Essa tensão entre o correto e o bom foi talvez o que senti de maneira mais intensa durante todo o processo eleitoral. E sim, ter sentido isso foi um reflexo direto da minha posição de muito privilégio de não sentir na pele a ameaça direta à minha existência. Não sei o porquê disso, só sei que foi assim.
Por não conseguir lidar bem com essa tensão, em vários momento senti que talvez estivesse traindo as pessoas ao meu redor que se sentiam ameaçadas por alguma das duas agendas (e eu conheço pessoas que sentiam ameaçadas por uma, outras pessoas pela outra, e outras pelas duas). E, em alguns momentos, esse sentimento de traição me fez tomar ações que não foram movidas por uma intenção pura e clara, mas que, na verdade, vieram de um sentimento que eu havia tomado de alguém outro (com combustão dos algoritmos que criam minha bolha). Exemplos dessas ações envolvem o compartilhamento de alguma informação de propaganda ou a quase discussão com alguém.
E o curioso é que, logo após tomar esse tipo de ação (de compartilhamento de algo ou quase discussão), eu me perguntava: “Por que eu fiz isso? Esse jogo binário já não faz sentido nenhum pra mim e eu sei que entrar nele é simplesmente alimentar a besta que é a dualidade”. E ai eu sentia que estava traindo a mim mesmo, por ter me apegado àquilo que parecida correto ao invés daquilo eu sabia ser o bom para mim.
Tudo isso que agora descrevo com certa clareza esteve muito nebuloso pra mim durante as eleições. E de certa forma ainda está. Eu não sabia exatamente quais eram as palavras e conceitos que me permitiriam expressar toda a complexidade daquilo que eu sentia. Felizmente, tive a sorte de encontrar o vocábulo que me faltava em um livro que me foi dado pela querida Flavia Cerruti que conheci na Jornada Amazônia.
O livro é A Alma Imoral do Rabino Nilton Bonder. Confesso que ainda não li o livro todo - e que na verdade estou no processo de leitura desse livro desde o começo do ano. Porém, nesse mês de Outubro tenho o lido com mais frequência, o que me permite um entendimento que eu interpreto como profundo da escrita dessa do Bonder. De maneira geral, o livro aborda uma tensão inerente à existência humana, que é a tensão entre a preservação e a transgressão. Representadas, respectivamente, pelo Corpo e pela Alma. Na tentativa de se manter como inteiro e negar sua mortalidade, o Corpo busca a sua auto-preservação através da Moral, que cria vestimentas para lhe cobrir e proteger, e regras e tradições para reger o que se pode (o que não fere sua atual existência) e o que não se pode (o que ameaça sua atual existência). Já a Alma, definida por Bonder como “o componente consciente da necessidade de evolução”, é transgressora por natureza, o que significa que a sua existência prevê mudanças, ameaçando a existência do Corpo preservado. Por isso, a Alma é vista pelo Corpo como Imoral. E dai vem o título do livro.
“A Alma seria parte do corpo, sua parte transgressora. Seria este o nome que se busca dar à presença de um elemento evolucionário do próprio corpo que, por um lado, nos impõe uma conduta rígida e comprometida com sua forma de ser, de tanto em tanto, com maior ou menor importância, trai a si mesmo e se reconstrói”.
Em suas explorações sobre essa dança entre Corpo e Alma, Bonder traz várias reflexões à tona a respeito das dinâmicas humanas, nos dando a entender que o ideal é sempre buscar um equilíbrio dinâmico entre as aspirações do Corpo e d’Alma, entendendo qual dimensão deve ter uma influência maior em cada situação. Uma reflexão importante aqui é o contraste que ele faz entre o que é correto e o que é bom. Sem entrar nos detalhes de como ele faz essa correlação através de um trecho bíblico, ele relaciona o correto com aquilo que nos fala o Corpo, e o bom com aquilo que nos fala a Alma.
“Estamos “bem” quando percebemos uma relação equilibrada na tensão entre o “bom” e o “correto” em nossas vidas. Muitas vezes, o “bom e correto” representa uma expressão maior do “bom” do que do “correto”.”
A partir daqui, espero que fique mais claro o porquê de eu ter destacado algumas palavras ao longo da minha escrita. Foi a partir da leitura da Alma Imoral que eu adquiri o vocabulário para expressar a tensão que eu senti durante o período eleitoral.
Agora que compartilhei esse conjunto de conceitos que o Bonder sintetizou, acredito que consigo prosseguir com o relato da minha experiência. De maneira resumida, durante as eleições balanceei entre trair aqueles ao meu redor e me trair. Ou seja, não estava bem, pois a tensão entre o que eu sentia como bom e o que todos apontavam como correto não estava equilibrada. A tradição de se colocar em um dos lados do conflito me acusava de traidor caso eu afirmasse que aquilo não fazia sentido. E toda vez que eu fazia alguma movimentação de defesa ou acusação de um dos lados do espectro, eu sentia que traia a transgressão que tanto acho necessária para sairmos dos ciclos de repetição de padrões (de feedback) que são uma característica - e não um defeito - dos sistemas democráticos representativos, e do conjunto de ideas que vêm com eles, como o neoliberalismo.
Dito tudo isso, o que então é “bom” para mim? Não me entenda mal, de maneira alguma considero os princípios democráticos ruins, mas o sistema democrático representativo parlamentar-presidencialista é um desastre. Primeiro por centralizar as tomadas de decisão em uma figura única que, sem ter para onde correr, necessita simplificar toda a complexidade inerente à governança de um país, o que por sua vez gera medidas completamente míopes e de pouca substância para lidar com os problemas altamente complexos do nosso tempo. Segundo por transferir a responsabilidade individual de cada um de nós para representantes outros que, invariavelmente, têm seus próprios interesses e anseios, o que retro-alimenta de forma que raramente uma oposição possa dar sequência ao trabalho bem feito de uma situação. E, por último, por dar vida à processos de eleição de representantes altamente polarizadores, como o que acabamos de viver. Algo que é um desastre para o jogo coletivo como um todo.
Sou altamente a favor da pluralidade, da diversidade, da participação política e tenho aversão completa a toda e qualquer tentativa de subtração de liberdade, principalmente quando esta está banhada em princípios autocráticos.
O “bom”; aquilo que ressoa com a minha Alma; a transgressão que pede passagem por dentro do meu Corpo, é uma reação ao risco existencial que a nossa espécie enfrenta com a confluência de várias curvas exponenciais, como a crise ecológica que separa nossa espécie do “mundo natural”; como o desenvolvimento tecnológico descontrolado que nos impede de ter discernimento, como os vários colapsos que começamos a assistir conforme tudo o que entendemos por estrutura começa a ruir e ameaçar a nossa existência e a própria Vida no planeta Terra. O “bom” é então a possibilidade da Auto-Organização; de novas formas de order (ordem dinâmica) em ambientes complexos - como nos processos naturais que podemos observar ao nosso redor; de auto-determinação em redes de interdependências e sinergias; de independência das estruturas em colapso; de Regeneração de nós mesmos e dos ambientes que habitamos; de uma nova compreensão da espécie humana, como um aliado à Vida - ao invés de uma ameaça. Essa é a parte de mim que se sente traída quando eu me apego às binariedade políticas e sociais.
Não! Essas realidades estão sendo co-criadas, sim! E agora, mais do que nunca, elas precisam de energia para darem os sopros de vida que as permitam servir de alternativa para quem não vê opções. Seguem alguns exemplos de iniciativas, projetos, redes, e tudo mais que têm vibrado nesta frequência e me dado esperança.
Confluência de projetos e iniciativas para Regeneração, Costa Rica: Um movimento com participantes governamentais, da Academia e negócios para o lançamento de uma rede de hubs de Desenvolvimento Regenerativo na Costa Rica para o aumento da biodiversidade e sequestro de carbono em bioregiões do país. A ideia é fazer desta experiência um modelo de ação para o mundo.
Organizações Autônomas Descentralizadas:O emergente campo de Arquiteturas Distribuídas de Informações - ex. blockchain - forneceu muita energia ao esforço de criação de infraestrutura para auto-organização, materializando os primeiros experimentos de DAOs (Decentralized Autonomous Organizations - Organizações Autônomas Descentralizadas). Conforme estas tecnologias se desenvolvem, a possibilidade de auto-organização em larga escala ganha mais e mais tração.
Estação Experimental Glocal para Ciências Abertas & Tecnologias Sociais P2P: Laboratório de Modus vivendi para experimentações em rede e geração de todo tipo de valor. Diversas materializações e interações acontecendo no âmbito Glocal.
Dagobah: Rede de articulação de residência democrática: “Como sobreviver, viver, conviver e inovar numa época de desconsolidação democrática, de declínio do capital social e de reação exacerbada à emergência da sociedade-em-rede? Qual o formato possível para novos empreendimentos sociais e empresariais distribuídos e democráticos num mundo que retrograda? Quando se abrirá uma nova “janela” e como devemos nos preparar para aproveitá-la?” Vários outros movimentos em rede dos quais estou ciente e participo, alimentados por um número crescente de pessoas que já compreenderam que a maneira pela qual temos nos organizado e vivido está obsoleta e, paradoxalmente, nos matando.
Esse foi o meu longo relato de um pouco do que esteve presente comigo durante esse período eleitoral conturbado. Fico muito triste com os resultados das eleições - não só nos pleitos, mas também no seio da sociedade brasileira. O cenário é de divisão em um momento que mais do que nunca pede união.
Durante o processo, trai aos outros e fui traído por mim mesmo, mas isso tudo foi essencial para ter o mínimo de clareza sobre como posso me portar. Primeiro, reconheço que devo reconhecer meus privilégios e honrar os sentimentos de outras pessoas, principalmente os sentimentos de dor, medo, angústia e aflição. Honestamente espero poder ser uma fonte de conforto quando confrontado com estes (nos outros ou em mim mesmo). Segundo, sem ignorar completamente os sinais do Corpo e daquilo considerado tradicional e “correto”, opto por continuar dando vazão à transgressão que grita por dentro de mim; àquilo que sinto ser “bom”. Continuarei dando sopros de vida àquilo que tenta Emergir por entre nós. Isso porque acredito que o “bom” pode suceder o “correto” antigo e traído. Ou seja, um novo patamar a partir do qual a transgressão passa a ser normal e não há traição - a tensão entre passado e futuro, Corpo e Alma se recompõe.
“Em realidade, a verdadeira experiência espiritual se nutre do presente instante que suporta as tensões da experiência do passado - a ser preservado - e do futuro - a ser construído a partir da traição.”