Nesse texto quero falar sobre como uma experiência específica me regenerou (durante um período, quase que diariamente): o viver e conviver na Casa Livre do Altinho. Esse é um relato que busca menos descrever o que é a Casa Livre (uma coisa não muito simples), e mais compartilhar, sob a ótica subjetiva, o que e como as coisas que eu vivi aqui me regeneraram.
Emocionalmente, a regeneração do que eu vivo/vivi aqui tem muito a ver com as minhas origens, no Jardim Popular, em Carapicuíba. Onde cresci como menino e adolescente, esse lugar tem conexões com partes profundas de mim. E o viver no Altinho reascendeu a luz da memória sobre o que eu vivi crescendo em uma periferia. Em algumas medidas, parecida com o morro e sua cultura. Por exemplo, por algumas veses eu me vi (e me imagino) nos meninos que frequentam a casa. Principalmente durantes os momentos de jogar futebol na laje (que guardo com carinho). Agora sinto que me ver como menino - diante dos meus olhos. Sem camiseta e de joelho todo coberto de cicatriz - despertou o menino dentro de mim. Que, por sua vez, foi muito bem estimulado pelo Teatro Clínica de DyoNises no mesmo período de tempo.
Eu me vejo pensando de forma semelhante a como vejo esses meninos pensando. Às vezes eu sinto que sinto as mesmas emoções que eles sentem, por que eu já senti elas em algum momento. Desde as emoções que emergem de um acalorado futebol, até possivelmente o que eles podem sentir como pessoas que não têm acesso a tudo que lhes é constantemente vendido. Situação que pode despertar, inclusive, encantos perigosos, se alguma das raízes deles não estiverem bem cuidadas. Sem falar nos estímulos totalmente destrutivos que os cercam diariamente, algo que realmente é muito perigoso para alguém começando a conhecer o mundo (e talvez com alguma revolta internalizada?)
Esse contato com o que eu já sinto que fui, me traz de volta ao que sempre foi importante, algo que me aquece internamente. O saber que não é preciso ter tudo para ser feliz é reavivado. Assim como a consciência e revolta da desigualdade que nos assola. Eu tive a boa sorte e iluminação de acessar oportunidades que me permitiram olhar para o mundo a partir de vários outros lugares. Isso é motivo de agradecimento diário. Mas não consigo não pensar no que será e, mais importante, o que seria desses meninos todos caso eles tivessem mais acesso. Acesso a outros mundos (simbólicos, sociais, reflexivos). E é isso o que eu vejo acontecer (e que me encanta) na Casa Livre do Altinho. De forma espontânea, caótica muitas vezes (claro, com suas ordens emergentes observáveis), não organizacional, convivialista, interativista, menos máquina e mais orgânica (humana?) - e com suas limitações e desafios, que são vários.
Uma reflexão curiosa é que, da maneira que percebo, o contato com a regeneração por aqui tende a ter o caos como ambiente. No sentido de que a vida (que muitos chamam de comunitária) por aqui não tem (tanta) exo-regulação. Existem poderes e algumas estruturas, mas não se comparam ao que observamos no mundo fora da favela. O que significa que existem pontos de flexibilidade (“degrees of fredom?) em várias dinâmicas co-relacionais por aqui - pro “bem” e pro “mau”, vamos dizer.
Isso já nos coloca em um outro lugar quando estamos presentes aqui. As coisas tendem a acontecer de forma repentina, àquilo que é muito planejado e controlado tem certa dificuldade de colar. Razão inclusive, talvez, da ausência do estado e seus “programas” nessas localidades. Apesar de que a sensação geral é de descaso e “foda-se” mesmo.
E aí é preciso aprender a conviver por entre o caos, o que as vezes é doloroso e muito desconfortável - dormir com um batidão e/ou acordar com uma explosão…
Mas existe algo a se receber através de experiências como essa. O principal é o nutrir da empatia vivida que criamos com as pessoas em situações semelhantes - que são muitas no mundo todo. Viver isso te faz refletir e perceber como o nosso modo de vida coletivo é, pra dizer o mínimo, doente e disfuncional. Injusto, triste, contra a vida!
E no caos estão todas as sementes “línicas”. As sementes dos padrões, dos arquétipos. Como “ativá-los”? Acho que a abordagem é outra. É ir paquerando e cortejando eles através de práticas, no dia-a-dia. O ritual, mesmo que simples e individual, é uma maravilhosa forma de contextualização pra prática. E através da prática do que se pensa (ajuste do gesto à palavra) e da interação convivialista temos uma oportunidade incrível (na escala p2p) de semear no caos. Ou seja, ser permitido no caos (individual e coletivo) das pessoas e a partir daí propor a semente de um outro padrão. Se agrofloresta regenera os “sistemas” naturais a partir do semear de um ecossistema, o que seria uma agrofloresta cultural?
E ao cuidar do outro (ou minimamente se atentar) ao outro, você passa a cuidar de você mesmo. Quem semeia é semeado (cuidar do outro é cuidar de mim). E aí a regeneração pessoal (da cultura, da psych, do comportamento) floresce.
Sem falar dos vários estímulos, ideia e inputs únicos desse lugar, que inspiram à mesma medida que assustam. E que nesse aparente paradoxo, existe uma complexidade singular, cheia de potencial! Isso dá esperança, fortalece o caminhar. Algo tão difícil de encontrarmos hoje em dia.
A arte por aqui se mostra impactante como em poucos lugares. O fazer artístico, mesmo que mínimo e espontâneo, causa sensações aparentemente raras nas crianças, principalmente. Tudo o que é diferente, causa curiosidade. E ao dar vez a essa curiosidade, abrese-sem portais de interação muito únicos. A ideia do desenho animado sobre o fenômeno das pipas no morro merece muito ser elaborada. Seria algo sensacional!
E quase todos os momentos de celebração coletiva têm um gosto saboroso que não encontramos nas celebrações protocolares marcadas no calendário gregório. As coisas são mais espontâneas. As pessoas se permitem serem quem são ou querem ser. Às vezes gerando desencontros, mas ainda assim acontecendo. Essa alegria, cantada e de certo modo invejada por outros mundos sociais também nutre. E mais uma vez sou levado ao meu passado.
Tudo isso, e muitas coisas outras que não consigo descrever com palavras, compõem os sentimentos (incluíndo saudade) que dá daqui quando não estou aqui. Sentimentos e saudade que não sei como vão se comportar depois que nos mudarmos. O laço existirá pra sempre - de maneiras diferentes, já que a própria casa passa por transformações (você, leitor pode inclusive co-criar essa transformação). Mas é impossível de saber como ele se manifestará. Quer dizer, uma coisa é certa: sempre me trará memórias… caóticas, bonitas, feias, sinfônicas, conflitantes, auto-organizadas, regenerativas!